quarta-feira, 21 de outubro de 2009

A travessa da rua Ezequiel A. de Oliveira

Era uma rua, que se trata na verdade da travessa de uma rua. Há vinte anos nem nome tinha, era encontrada pelos carteiros e sorveteiros de carroça, usando como referência o número da rua mais importante, mas não mais significativa que esta travessa.
Hoje tem portão eletrônico, ativado por um controle remoto que Tia Alice e Tio Carlos manuseiam com muita cautela. Ao dar um toque no interfone do portão, conta-se dois minutos e lá está Tia Alice, com seus brancos cabelos, sua notável corcunda que é uma curvatura na coluna realmente excepcional, talvez por sua má postura no decorrer de sua vida. Conforme me aproximo de sua figura, noto seus espessos óculos, de vidro, tradicionalmente chamados de fundo de garrafa, olho para seu rostinho enrugado, cheio de rugas, que deixa sua face flácida. Então, vê-se murcha a pele da bochecha que fica levemente caída, que vontade de apertar, esticar, manusear essa bochecha! Ah! E suas veias roxas elevadas no braço, quando criança, apertava-as com as pontas do dedo, em contraste, o seu fino punho de tez rachada.
Sua presença se dá às vezes de roupão e chinelos estofados, pantufas, ou sua calça bege com vinco, aquela marca de passar a roupa, e uma de suas lindas camisas florais, sempre com um broche. Provavelmente um dos broches que ganhou de lembrança em alguma viagem que fiz.
Fui à casa de meus tios avós após o almoço, em uma insignificante quinta-feira, choveu, mas logo o sol reapareceu tinindo no céu. O trânsito dos carros carregou, em decorrência da tempestade que havia caído.
Mas o que me moveu a visitá-la, fora antes do motivo concreto, a culpa de não ter cumprido as tarefas diárias, uma delas, faltar na aula. Diante de meus pais, a pequena falha ou desleixo, tomou proporções que me fez ficar trêmula sentada à mesa do almoço.
Acordei, o fluxo rotineiro da minha casa já havia começado a todo vapor, preguiçosamente me banhei e desci para a cozinha. Sentei me na cadeira ao lado do telefone, nas minhas costas, o paletó de meu pai, pendurado para não amassar, à minha frente sua presença, sentado em seu lugar da mesa, por cima da camisa branca, um babador de guardanapo.
Sentei me à mesa para almoçar. Reparei em meu pai, estava pronto para ir ao trabalho, minha mãe, que trazia panelas à mesa; sentou-se. Havia feito uma cirurgia no rosto um dia antes, para remover um câncer de pele e uma glândula sebácea que estava se desenvolvendo desde um acidente sofrido na gravidez.
O que me sensibilizou, à mesa; foi o fato, da palavra “câncer” ser de um peso e dimensão que ecoava na minha cabeça, assim voou na imaginação, junto, o simbolismo que trazia os dois curativos.
A visão que tinha, era dos esparadrapos e gazes no rosto inchado de minha mãe, que é de uma tonalidade bem clara, clarinha e naturalmente sensível, pois seus olhos são azuis e louros os cabelos.
Fui cuspida de casa diante de tantas pessoas atarefadas, minha própria mãe, em seu “repouso”, cuidando da funcionalidade e eficiência do lar, que todos estivessem bem alimentados para começarem seu dia.
Cheguei na casa de meus tios, trazendo cebolas, o cartão da aposentadoria junto com o dinheiro que fora retirado pela minha mãe na Caixa Econômica Federal, e as notas fiscais referentes aos pagamentos efetuados das contas da luz, telefone e água.
A recepção foi mais afetuosa que de costume. Costume esse esporádico, de visitar meus tios, nada para se estranhar. Entrei, tirei a mochila das costas e coloquei-a no chão, Tia Alice interviu nesta ação e colocou a mochila em um cantinho da sala. Nos sentamos, tirei as sandálias, o calor me fazia suar, e por ter frieiras, achei melhor os pés respirarem para assim elas não se proliferarem. Esta atitude me deixou um pouco constrangida, estava na sala da casa de meus tios.
Com os pés indecisos, optei por colocá-los em cima das sandálias, ao invés do tapete que estava por baixo.
Prosseguimos nossa conversa. Contei novidades sobre os familiares, os próximos aniversários destes, como andavam os estudos e finalmente as formas alternativas de se ganhar dinheiro, já que não havia tempo para isso.
Eu era sem sombra de dúvida, querida pelos meus tios, mas a quem eles realmente tinham uma enorme afeição era por minha mãe. Talvez por gratidão, ela sempre foi muito bondosa e batalhadora, assim falamos sobre ela. Contei como andava o repouso de mamãe, e a conversa foi parar em doença.
O tratamento de outros velhinhos vizinhos foi tema principal. Como era frágil à velhice pensei; teria eu que estar presente todos os dias naquela casa? Caso houvesse uma falha no suporte físico deles.
Tocou o telefone, era “a simpática” do Hospital São Paulo informando que os remédios já podiam ser retirados a partir de amanhã.
– Está certo meu docinho? Fique com Deus!
Tia Alice agradeceu e desligou.
Sentou-se, e tio Carlos se manifestou:
- Amanhã completo noventa e quatro anos e três meses.
Quase um século! Os remédios? Seriam ainda eficazes em relação ao tempo que eles já viveram? A precaução, manutenção da saúde, estaria contra a natureza de meus tios?
Percebi que naquele ambiente só se podia viver a nostalgia, e surgiu o convite de Tia Alice, irmos para a cozinha tomar um chá.
Não sei como Tia Alice percebeu, mas eu estava que, parecia ter um escritório em minha cabeça. Ela acabara de desligar o telefone. Certamente, foi uma maneira delicada de me poupar, adentrar a um conhecimento tão íntimo e natural, que é o envelhecer. Coisas opacas por testemunha.
Tia Alice foi primeiro para a cozinha, preparar o chá que havia me convidado. Fiquei a conversar com meu tio, ele revelou saudades e vontade de voltar a caminhar pelas ruas. Olhava para ele e via que não havia mesmo condições para isso; o sol não podia mais descarregar sua energia e calor na pele de meu tio. Havia grandes pintas ao redor de seus olhos, seus óculos, as pintas eram grandes, de diâmetro e também o seu volume. Ressaltava-lhe do rosto, as pintas marrons. Logo, me levantei, ajudando-o a se levantar, fomos para a cozinha.
Mesa posta, a escolha feita findou sendo gelatina, que acabara de gelar; vulgo treme-treme, como dizia meu avô.
O rádio foi ligado na estação escala, e a conversa correu como a música que tocava; fluida e harmoniosa. Alguns acordes puxavam, e meu coração palpitava de emoção com histórias passadas; escasso, inexistente o desenvolvimento dos sonhos. Flutuei na música então, foi o que fiz; som cruel cotidiano.
Tia Alice abriu uma bolacha recheada e preparou um refresco, depois da gelatina, e me falava para comer, comer... Sendo que olhava para seu braço e murmurava: - Só pele, e osso.
Nós três envolvidos na conversa, e, subitamente Tia Alice pediu licença e me avisou que iria pegar uns colares que lhe pertenciam, para me dar. Não consegui conter um comentário vivo, porém, lamurioso:
- São lindos os seus colares tia. Você vai mesmo me dar?
Estranhei a decisão de Tia Alice, de se desfazer deles.
Nem deu confiança paro o que eu falei, afastou-se da mesa com seus passos lentos; logo estava subindo as escadas. Ficando eu e tio Carlos na cozinha a esperar. Enquanto isso, o tio falava e eu ouvia, mas meu olhar de nenhuma forma encarava-o, estavam sim, fugidios, e corriam por toda cozinha. Não sabia se vivia este momento centrando a atenção nas palavras de titio, ou se antecipava no presente, à recordação deste momento. Quantas vezes mais eu iria encontrar com meus tios? Era o que não saia da minha cabeça. Mas titio insistia em me dizer,
- As escolhas que fazemos em nossas vidas, acabam virando conseqüências, assim, concordamos, ou nos lamentamos.
Estaria ele satisfeito? Falou isso porque não deixou descendentes nesta vida? Pelo fato de Tia Alice ser estéril; estaria ele arrependido? No fim de sua vida, refletir sobre seu casamento com essa mulher que não pariu...
Ela voltou com uma caixinha azul cheia de estrelinhas, de variados tamanhos, abriu-a, e lá estavam, três lindos colares e mais um brinco de pressão, esses de ir atarrachando até apertar o metal à orelha, ficando seguro à não cair. Apresentou um por um para mim, olhava as pedras nos colares, que titia me mostrava, com uma intensidade, que, quase as estourava uma a uma, tal era a estranha morbidez minha, ao receber à esta oferenda .
A caixinha era da Casa Kosmos, loja esta, que nem existe mais, foi superada pelo tempo. Antes de titia me entregar o presente, pediu para que Tio Carlos pegasse elásticos lá fora. Ele saiu pela porta dos fundos da cozinha e voltou com uma caixa cheia de elásticos; ele manteve essa mania, de guardas coisinhas, papéis de vários tipos, tesouras enferrujadas, etc. Essa caixinha que trouxera era dos elásticos de prender dinheiro!
Colocaram três, dois nas extremidades e um no meio, pronto, a caixinha não abriria em nenhuma hipótese.
Fui ao banheiro antes de partir, subi as escadas com os olhos alagados, pois via em meus tios mágoa, vida e despedida. Desci dando de encontro com eles na sala, Tia Alice falou que o céu de ontem parecia estar pegando fogo.
Peguei a caixinha azul e coloquei-a na mochila, despedi-me ainda dentro da casa, fui acompanhada até o portão.
Ah! E confirmei; amanhã os buscaria para irmos ao Hospital São Paulo.

an passant

O encontro de dois universos distintos, o cravo e a rosa, ocorreu naquele pequeno local, que palpitava alegria e prazer de estar com o corpo presente atento à melodia graciosa de um domingo qualquer.
Promessas de uma culinária simples no aconchego do lar durante o tempo consumido pelo cigarro amigo. Projeto de mesa posta, feita por ingredientes comuns que significam planos de suprimir a ansiedade de conhecer as peculiaridades do outro, novo em ambas as vidas e que se cruzaram por um acaso. Mesa envolta de cheiros agradáveis que despertavam o apetite de compartilhar.
Semana corrida, projetos pessoais cumpridos e a chegada do fim de semana que clamava por encontro. Voltamos ao local de partida da história, quando prevaleceu o espírito de festa, de música, de dança. Entrosamento este que repercutiu em pensamentos sobre o encontro do cravo e da rosa. O que eles querem um do outro? Qual sua ligação?
Junto dos pensamentos um receio surgiu e a vontade de se preservar, não comparecendo ao prometido banquete, que se concretizou num convite com uma semana de distância do primeiro encontro. Mesmo com receios, sentia atraída pela alegria contagiante, leveza e sociabilidade do cravo que a levaram a remarcar esta visita para o mesmo dia no cair da tarde.
Uma caminhada pelo local preferido de São Paulo desembocou num bar, num papo, num conhecer mútuo agradável que ainda deixava questões sobre para onde caminhava, enquanto era observada meticulosamente.
Soltou-se da maneira que pode, estava junto e sem objetivos, com exceção de curtir o presente. Finalmente o estrondo! Uma badalada festa ao domingo, carona para mineiros, diversão e ruptura de limites comportados deixaram a rosa animada com tudo o que estava acontecendo. Mas o que estava acontecendo? A essa altura, não havia mais preocupações, a resposta estava no próprio acontecimento.
Mas essa ocorrência estava com travas na engrenagem, com desencontros, viagens, celulares sem crédito, enfim, uma fragilidade na comunicação que transformou em incógnita aquilo que no princípio era misterioso.
Você e eu. O cravo e a rosa. Sei agora da rosa.
O fim faz pensar no percurso decorrido e dentro dele, a personagem rosa reconheceu sua falta de confiança, de ser a dona da história, de afirmar a representação de sua beleza. Mas ainda cultiva esperança de se fortalecer resistindo à fraqueza da presença de seu espírito.
Lembranças carinhosas de quintas-feiras que acenderam seu desejo e encerraram suas expectativas.