quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Como entrar pelo buraco da fechadura

Com a chave em punho, ouve-se o trilar do molho. Assanha quem está do outro lado, o cachorro fiel que abana o rabo, a esposa ansiosa, bem vestida, de salto alto e maquiada os filhos carentes de respostas sobre para o que serve isso e aquilo, porque assim e não assado, do pó do chão à órbita no espaço.
Do outro lado, sobre o capacho, seu nome interrogado pela esposa é de praxe: por vezes surpresa, quando fora do horário, outras vezes desconfiada de ladrão.
Sempre uma espera, dias bons, dias ruins, porém jamais indiferente.
Através da soleira ele transpira a rotina e a porta é a quebra do habitual.
Num gesto atropelado, chave em punho na mira rebaixada, deixa-se conduzir pelo segredo soprado da fechadura.
Primeiro cola o ouvido na fechadura e ouve um sussurrar, impassível espia.
O segredo é compartilhado quando sugado para dentro.
Entre dentro e fora da casa, vai para o local que a chave ocupa.
No espaço minimiza o turbilhão que encerra o dia.
Na fronteira inaugura o fim.
No principio se debate, as proporções não são conhecidas.
É tão íntimo que estranha o local. É tão seu, que se perde de si.
Nada pode intervir no manuseio da maçaneta, mas é decisivo na permissão de quem entra ou sai.
É guardião da mitologia doméstica.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Acordar muito cedo

Acordar muito cedo é um poço que vai do escuro para o claro, trazendo da fonte, a luz inaugural.
O encontro com a manhã cumprimenta os pássaros em mutação de turnos, modulando seu sibilado.
Raios solares rompem cortinas, descobre com a incisão de luz, direta e indireta, pela fresta ou tecido.
Em casa, a poeira a pique, na rua, motores aquecidos.
Do corpo, estado pacato, olhar vagaroso, movimentos sem pressa preparando-se para o ligeiro ataque da natureza, o Sol.
Sem educação, o golpe do dia dissemina o aroma do café e pão. Sentado a mesa, límpido e fresco, bebe um copo d’água e suja as mãos ao folhear o jornal.
Com repugnância pensa no disparate dos fatos noticiados.
No meio do café, pensa no seu dia do fim ao princípio.
Sem ensaio sai. Entra na cidade.